sábado, 27 de agosto de 2011

Cena de ciúme

O bar era daqueles bem brasil, alta gritaria, com caixas de cerveja fazendo o papel de biombos etílicos entre mesas dobráveis amarelas da skol, de onde a todo momento espolcavam "tschxsh" (se bem que muitos linguistas e escritores de vanguarda já usem o "thxschxx"!) de garrafas de brahma e kaiser e antarctica e até bavária sendo abertas.
Os dois sentaram bem no canto, embaixo de uma televisão preto e branco que passava uma aula de física quântica do telecurso septuagésimo trigésimo oitavo grau, da Fundação Roberto Marinho Neto e com a chancela publicitária da sua, da nossa, da de todos nós juntos, mas todos mesmo, sem exceção, Tabacaria do Seu Glênio, ali, dobrando na Sertório, anda mais três quadras, entra à direita e já vê, de longe, na subida do morro, a casa verde com janelas verde clarinhas. É ali. (Entra jingle: "Tabacaria do Seu Glêeeeeenio. Tem do modess ao balão de oxigêeeeeeenio!"). Durante o comercial seguinte Eme não resistiu e, após gritar mais uma brahma ao caixa-varredor-balconista-garçom-leão-de-chácara Zoínho (o pobre não tinha dois dedos da mão esquerda), interpelou Agá sem pestanejar:
"Chega, Agá, eu não suporto mais os seus agarramentos com Ce, as noites passadas com Ene e seu irmão Ele e, ainda por cima, agora deu pra sonhar com o maldito Esse, desde que começaram a frequentar shows, shoppings e essas frescuras todas dos gringos. Pra mim deu, Agá."
"Calma, Eme!", balbuciou Agá lamentosa e gosmenta. "E tu, hein, tu que não larga o pé daquelas duas barangas nojentas e antipáticas; o que que elas têm que eu não tenho? Fala, Eme."
"Falar o quê? De quem tu tá falando, pô?"
"Ora, ora, tá esquecido, é? A piranha da Pe e aquela clarimunda da Be, e tu sempre atrás delas, e elas sempre de costas pra ti, as duas rindo de mim..."
"Entende de uma vez por todas, Agá: isso faz parte do nosso trabalho, do nosso jeito de ser, da nossa língua..."
Por volta das sete da manhã, as gargantas secas de tanto bate-boca inútil, os dois já bastante altos e se sentindo estranhamente caixa baixa, chamaram pela última vez o Zoínho e, jogralescos, sentenciaram:
"A saideira, Zoínho."
Na tevê, começava Bom Dia Brasil, num oferecimento de Funerária Black Future, a única, e bota única nisso, a única no ramo com esquifes equipados com aparelho de dvd blue ray, ar condicionado, posto do sus, completa bibliografia de Adolf Hitler e circuito interno de tevê que só passa os trapalhões e domingões do faustão sem as videocassetadas. "Funerária Black Future: você ainda vai precisar de nós. Ah, vai!"

Hello Goodbye

Oi! E aí... tudo bem? Tudo! Na luta, né? É. Tem que ser. Não dá pra parar. Às vezes, só. O quê? Parar. Como, parar? Não, não é bem parar, é largar tudo, não se grilar, não... Esquentar? É, ficar frio, distante, longe... E aí? E aí o quê? O que que se faz? O que que se faz o quê? Quando se larga, se fica frio, longe, se vive do quê? Do resto, porra! Resto?! É, das pequenas grandes coisas: os loucos e agudos acordes de um rasgado rock'n roll, a prosa descompromissada com aquela senhora cheia de pacotes com frutas no terminal de ônibus do mercado, aquele conserto esperto na torneira da cozinha que xaropeava a noite toc-toc toda, aquele pãozinho quentinho com manteiga (se bem que uma fatiazinha de queijo sempre vai bem) da confeitaria do seu... seu... como é mesmo o nome? Não precisa. Não precisa o quê? Não interessa o nome do homem da padaria... Como, não? É importantíssimo, até porque isso é uma das pequenas grandes coisas mais sensacionais que existem: descobrir nomes de pessoas por quem cruzamos algumas vezes e menos vezes ainda conversamos abertamente com elas... Tá, e daí? Tem mais. Mais? Claro, a batida forte da onda contra o teu peito, a flor que insiste em brotar em meio a milhões de paralelepípedos geralmente retangulares,cinzas e frios. Bonito! O quê? Tudo que tu tá falando aí. Mesmo? Gostou? Claro, é um pensamento pra viajar, libertador, pra romper amarras, afinal, nós não somos só carne, né, temos cabeça para ir aonde quisermos. Isso, tu sacou tudo, cara! E tem mais, é só a gente... Opa! Apagaram a luz. Que horas são, Moisés? Dez, tá na hora. Ô, Pedrão, dá uma força, deixa a luz mais cinco minutos. Vai à merda! Esse Pedrão é um fudido! Não esquenta, cara... Não esquentar? Como? O homem é um carrasco, não podia deixar só mais cinco minutos a luz acesa? É a regra, Laurindo. Regra, regra, regra, no cu com regras. Hoje mesmo vou pensar em algum jeito de sair dessa bosta de presídio. Não esquenta, Laurindo, não esquenta... Lembrei!! Que foi, cara? Lembrei! Lembrou do quê? Do nome. Que nome? Do nome do homem da padaria que vendia pãozinho quentinho pra comer com manteiga... Aaaa! Quer saber? O quê? Quer saber o nome dele? Sinceramente? Claro, sinceramente. Não, não quero. Boa noite, Laurindo. Boa noite, Moisés.

Autorretrato

Através de atos antropofágicos
Balbuciava blasfêmias e besteiras
Constantemente claustrofóbico
Danificava dogmas e damas derradeiras

Eventualmente exercitava o espírito
Fatigado, fugia do fogo frio
Grande guerra, gás, grito, gozo
Hora h, história, homem hostil

Inteligentemente integrado, índio
Jamais o jovem julga ou jura
Levanta, livre, louco e labora
Misterioso, manso, qual mar murmura

Natureza nitidamente nitrogenada
Ofegante oprime olhos otários
Presa em parques, praças, piadas
Quieta queda em quarentenários

Razões raramente racionais
Satirizam situações de sofrimento
Transviadas em tipos tradicionais
URP, usucapião, UPC... unguentos

Vazia e vã a vida vai e volta
Xerox, xadrez e xeque-mate
Zanzando em zigue-zague na zona zen

Constatações

A vida tá braba.
A carne é fraca.
A Inês é morta.

Mas
Porém
Contudo
Todavia

É massa
Pôr em prática
Ir com tudo
Usando toda via

Não é a vida como está
E sim as coisas como são

Olhos nos olhos
Boca desnuda
Pablo Neruda

Quintana
Foi muito bacana
A mundana
Em Copacabana

Caracóis
Blue-jeans brejeiros
Um fusca vermelho
Um beijo vermelho
Sinal vermelho

Sinal amarelo
Sinal verde
Sinal amarelo
Sinal vermelho

Tchau...

Rimando contra a corrente

Em meio a tantas crises
No auge dos racionamentos
Ainda temos como consolo
O maior dos sentimentos

Para obtê-lo sofremos muito
Sem ele vivemos frustrados
Quem dera tê-lo em abundância
Para ofertá-lo aos necessitados

Amor, amor, palavra vã
Na cabeça dos insensíveis
Mas que traz em sua essência
Poderes quase impossíveis

Enfim, todo mundo é humano
Vivos como um pássaro, uma flor
Nascendo, crescendo e vivendo
No solo fértil do amor

Cervejas e picadinhos

Reflita sobre o que passou.
As tendências, os modismos, as certezas.
Projete então o seu presente e o seu futuro.
Suas aspirações, planos e ideais. Agora crie.
Faça de cara um belo "rafe" de sua ideia. Depois pense, pense, retire algumas coisas, acrescente outras. Pronto. Passe pra arte final. Com calma, paciência, mas muita determinação em fazer o melhor. Isso. Você é o seu cliente. Pense de novo. Gostou? Então aprove!


"Uma cerveja bem gelada, seu Manoel.
E um picadinho, que ninguém é de ferro!"

Passemos então à mídia. Suas ideias devem ser colocadas no momento certo, no lugar correto e pras pessoas idem. Isso! Pensou bem. Mãos à obra! Coloque uma retícula bem clarinha no seu título, para não parecer pretensioso demais em seus objetivos, mas castigue no texto, arrase, diga tudo o que tem direito, sem poupar pontos de exclamação!!! As interrogações ficam a gosto, mas não exagere.
Deu!
Depois de uma boa revisada, tudo ajustadinho, peça ao seu produtor predileto que faça 365 impressos. Se couber no orçamento, lasca uma corzinha de leve, pra descontrair. Se não der, tudo bem...
Ah! Ia esquecendo: bom oitenta e oito pra você!
E que os frutos de sua "campanha" possam pagar várias cervejas e picadinhos nos bares da vida, falô?!

"Seu Manoel! Traz a 'saideira' de 87.
Picadinho nem precisa mais. Feliz 88, seu Manoel!!!"

Al perderte...

Al perderte yo a ti
Tú y yo hemos perdido:
Yo por que tú eras
Lo que yo más amaba
Y tú por que yo era
el que te amaba más.
Pero de nosotros dos
tú pierdes más que yo:
Porque yo podré amar a otras
como te amaba a ti,
pero a ti no te amarán
Como te amaba yo.


                     Ernesto Cardenal






sexta-feira, 26 de agosto de 2011

No bunker

O som dos reco-recos entrou ribombando nos pavilhões esquerdo e direito de Ferbundo Bollor, deslizando por estes até colidir em frontal com os timpânicos amplificadores da sua consciência. "Fora", "Deu Pra Ti", "Milho da Gruta" e outros. Ele afundou a cabeça no travesseiro Yves Saint Exupéry, ergueu aerobicamente os braços, peidou em alto e bom som e, quando ia terminar um grande bocejo, foi interrompido pela estrepitosa e borralheiresca adentrada de Gozane, acompanhada como sempre de seus trinta e cinco guarda-costas-lados-frente-coxas-boca: "Amor, chama um camburão e mete essa meia dúzia de jegues molhados (genérico alagoano de gatos pingados) na solitária". "Cala essa matraca, o praga! As luz! Apaga as luz ligero!" O local não tinha mais o fausto da Cabana da Prima, em Baunilha, mas a comida ainda era farta em carne de sol, leite de coco, rapadura e farinha, muita farinha. As acomodações eram as mais variadas e graciosas, desde cubículos privativos um por um, com redes muito bem acabadas e confortáveis, passando por beliches um por meio, emparedados, forrados com sacos de estopa novinhos, e culminando com resmas e resmas de papel espalhadas pelos corredores fétidos, úmidos e iinfestados de ratos, baratas e outros insetos, papéis estes que sobraram de campanhas eleitorais do passado. Aliás, sobre estas resmas, dizem que são o local preferido de Tesesa, a cunhada de Ferbundo, para a sua prática esportiva predileta: dar pulinhos. Carl Lewis que se cuide, é a última anedota que anda fazendo o pessoal gargalhar e se mijar e vomitar carne de sol de tanto rir lá embaixo. Risos que só são interrompidos pela chegada do hieróglifo, hipnótico, hipertenso, híbrido e anti-higiênico administrador do bunker. O deus, o todo-poderoso, o único: B.R. Fez. É a ele que todos aplaudem e idolatram, as mulheres se rasgam, os homens se abichonam e as crianças ranhentas choram e babam tudo ao mesmo tempo. Uma consagração. Coisa que deixa Ferbundo indignado. Afinal, ele e alguns amigos, seus irmãos Medro e Leopolvo, e muitos outros, estavam sendo ludibriados por B.R. Fez. Não era aquilo que tinha sido combinado quando do início da construção da minifortaleza de quinze por dez, no fundo do pátio e da piscina da Cabana da Prima. Enquanto ele e os outros carregavam as pedras, o cimento e a areia  pro buraco, ele (Fez) não saía da casa principal, calculando os gastos da família Bollor, com a assessoria sempre presente de Gozane, Tesesa, secretárias e mais secretárias. Bem. Bundinho (apelido de infância de Ferbundo) não aguentava mais aquela situação. Correu desesperado até a entrada de ar. Respirou ofegante, mas decidido: pisando sobre pernas de crianças no chão, interrompendo o entrecurso carnal de um garotinho com uma velha alagoana de seus sessenta e poucos anos, de sua boca espolcavam feéricos e raivosos perdigotos ao gritar sua repulsa: "Larguei, B.R., larguei. Hoje é cinco ou seis de agosto de 2004, tu disse que em pouco tempo a gente saía dessa. E até agora, nada. Nem um bife, B.R.!" Ao que B.R., de bate-pronto, retrucou: "Calma, Bundinho, calma". E sendo ovacionado se deslocou em direção às pilhas de papel, onde Gozane e Tesesa promoviam brincadeiras para os homens do local: "Agora é eu!". E os reco-recos recomeçaram...

Arquipélago

Uma gota de chuva deslizou indiferente pelo vidro da janela, fazendo-me despertar. Voltava de longo voo por entre ilhas problemáticas, penínsulas depressivas e rápida escala no farol da solidão. Foi no farol, aliás, que decidi pela volta. O breu gelado e úmido daquelas paragens cortavam como navalha o meu peito, e doía, e maltratava-me por dentro. Lembro bem que, ao sair, procurava luz, calor, sol. E também recordo que os cheguei a ver de frente, bem de perto, quase tocando-os, e que foi neste momento, quando tudo parecia quente, aconchegante, claro, que essa mesma luz, esse mesmo sol me cegou, me tirou os sentidos e jogou de cabeça contra as rochas do arquipélago das desilusões, primeira parada da viagem que comecei na segunda frase desta crônica. Desde então, dou extraordinário valor a qualquer gota de chuva que, indiferente, desliza pelos vidros das janelas.